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Entrevista com Saulo Wanderley por André Pomba

Complementando a entrevista respondida por André Pomba Cagni, personagem destacada no cenário musical nacional, agora é Saulo Wanderley que responde às perguntas.

IsEurope

 

Segunda loja de A Serenata, na avenida Olegário Maciel, no centro de Belo Horizonte, no térreo do prédio onde morou Saulo Wanderley

 

Pomba: Saulo, conte um pouco como foi seu começo na música, onde foi, na fase de aprendiz.

Saulo: Nasci em Belo Horizonte, onde morei até começo da década de 70, quando no Brasil chegava o rock progressivo. O primeiro instrumento foi um violão Giannini, que logo eletrifiquei e pluguei num amp valvulado histórico – um Minim Might Giannini – a princípio um cubo, que logo serrei, e usei como cabeçote com um gabinete handmade feito por um carpinteiro amigo no qual instalei os falantes Novik, um woofer de 12 e médio de 8. Ali nasceram juntos o interesse pela música e pela tecnologia. Fui estudar violão erudito na Escola de Música Agustin Bob, como o professor Matos, que me ensinou o básico da leitura de partituras. Métodos do Fernando Azevedo completaram o autodidatismo, e logo comecei a “tirar” músicas do The Guess Who, The Who, Creedence Clearwater Revival etc. Morava na avenida Olegário Maciel 169, em cima de onde foi depois instalada a loja de instrumentos Serenata, que começou na esquina, rua dos Tupinambás onde comprava instrumentos e acessórios, logo, já metido na origem com os lojistas e fabricantes. O apartamento onde morava tinha uma sacada, onde me sentava na janela e abria o volume do Minim Might, aberto ao público…

Pomba: Você teve grupos musicais ou tocou como músico de apoio?

Saulo: No Instituto Padre Machado, onde estudei, montei a primeira banda, o Pandemônio, com o Chico Lôco nos vocais, Spencer Rosa no baixo e Cacaio na bateria, tocando uma guitarra Begher estereofônica, 24 trastes e com distorção embutida. O jornal Rolling Stone brasileiro na época elogiou a banda. Me entusiasmei e me candidatei a baixista na banda do guitarrista mais famoso em BH na época, o Pardal. Fui reprovado num teste com Jumpin’Jack Flash, dos Stones, porque inventei notas demais… Na época a música do pessoal do Clube da Esquina predominava na capital mineira, que tinha duas “bandas de baile” principais: os Intrépidos, que tinha como tecladista meu falecido primo Wilsinho Machado, e os Turbulentos, do Flávio Venturini. Mas não cheguei a tocar com nenhuma dessas bandas, mesmo tendo sido muito influenciado por elas. Morava com minha avó, no bairro de Santa Tereza, próximo à famosa esquina das ruas Paraisópolis com Divinópolis. Os finais de semana eram marcados por noitadas tocando violão nas ruas com o Ricardo Penchel – um clone louro juvenil do Rick Wakeman, ou sonorizando bailes com minha primeira “empresa”, a Hell’s Barrier, com os amigos Marcos e Ricardo Lessa. Saí de BH rumo a Sampa, como muitos músicos mineiros faziam na época.

Pomba: Como você começou na educação musical?

Saulo: Comecei inventando um sistema de grafia musical desenhado, que depois dei o nome de Toque Igual ao Disco. “Tirava” as músicas no violão ou guitarra, escrevia na pauta musical e abaixo dela colocava o sistema, tipo tablaturas mas com durações, e fazia xerox dos originais, cuidadosamente escritos à mão nos cadernos de partituras Deltapy, de saudosa memória. A princípio vendia pros alunos, mas logo fui contratado pela Imprima Comunicação Editorial, que editava a revistinha de cifras VIGU – Violão & Guitarra, onde produzia métodos de violão e guitarra. Nesses primeiros trabalhos incluía anúncios do Toque Igual ao Disco em parceria com a editora, e comecei a ganhar dinheiro extra com encomendas de transcrições musicais, que enviava via Correios. O sucesso do projeto junto com o dos métodos, fez a editora abrir uma escola que dirigi – a Com a Corda Toda – no bairro da Pompeia em Sampa, e o trabalho didático evoluiu para métodos de prática de conjunto, envolvendo teclado, baixo e bateria. A esta vivência prática, se somou o curso de Composição na UNICAMP, década de 80, e a natural evolução para a música erudita contemporânea, como aluno de Conrado Silva, principalmente, o Núcleo Música Nova e as parcerias com Wilson Sukorski, com quem montei a banda Grupo de Risco, já nos anos 90. 

 

Setup montado no fundo da loja de instrumentos da Imprima Comunicação Editorial, onde eram produzidos métodos de instrumentos musicais

 

Pomba: Conte um pouco da sua trajetória em publicações musicais, como a ON&OFF, Violão & Guitarra etc.

Saulo: Na Imprima, comecei escrevendo os métodos de violão, nos quais “tirava” pequenos trechos, geralmente intros, riffs e licks, que acompanhavam as letras cifradas. Além de mim, na editora cifravam os sucessos o Bozzo Barretti (Capital Inicial), e o Cacho (Adelson Queiroz, um monstro na transcrição). A coisa evoluiu com o boom dos métodos com áudio, e para a Imprima criei uma série de CDs – Violão CD – com acompanhamentos em andamentos diferentes, a 25%, 50% e 100% do andamento original, baseado em artistas e bandas de rock, MPB, sertanejo e samba. Acontecia nessa época a chegada da Internet ao Brasil (1996), quando fui colaborador e em seguida redator da revista Rock Brigade, onde conheci o André Pomba Cagni. Pomba me convidou para ajudar a fazer a primeira edição do fanzine Dynamite, e a evolução foi bem rápida, até se tornar uma revista. Paralelamente, também fui colaborador, redator e depois editor da revista ON&OFF, sediada no saudoso casarão da rua Pinheiros. A ON&OFF foi pioneira em formato de revista de equipamentos e instrumentos, publicando transcrições, mapas de palco e outras novidades depois seguidas por outras revistas do gênero. Em um evento histórico no Aeroanta, em Sampa, o Grupo de Risco estreou abrindo para a banda Doctor Sin, solidificando as bases da Dynamite e o que estaria por vir.

 

Na Expomusic, com Alexandre Baroni e Augusto Gaia, diretores da Quanta Music, forte parceria nas revistas ON&OFF e DYNAMITE

 

Pomba: Durante muito tempo você teve participações marcantes em feiras musicais, como a Expo Music nos anos 90. Fale um pouco dessa experiência.

Saulo: A Expomusic foi a tradicional feira de instrumentos e equipamentos brasileira até alguns anos atrás, tendo à frente a saudosa Vanira Salles, sua grande incentivadora. Comecei a participar lançando no stand da Dynamite/ON&OFF o projeto Toque Igual ao Disco, mais precisamente as TID Files, arquivos MIDI que substituíam as transcrições impressas, fazendo a ponte entre as edições do Violão CD, que mencionei antes, com a possibilidade do aprendiz regular o andamento da música que estava estudando via MIDI. A ideia surpreendeu os expositores, mas não os editores e diretores da Imprima, que, infelizmente, não se deram conta da potencialidade da inovação. Continuei a produzir métodos impressos, mas tive um insight que me levou a Porto Alegre, para onde me mudei em 1998, continuando a trabalhar para a Imprima, via Correios, fax, e consequentemente Internet. Na capital    gaúcha rapidamente fiz parcerias, uma delas com a Pop Rock FM, que co-patrocinou a primeira edição da revista Toque Igual ao Disco, com a banda Papas da Língua. A ideia era acompanhar uma banda a cada edição, conferir as cifragens com os integrantes, e lançar uma versão “original” das transcrições musicais. O lançamento foi incrível, no programa da FM, com a presença da banda, e a distribuição mais incrível ainda, feita por displays nas lojas da Multisom e motoqueiros nas bancas de revista. Já estávamos no século 21, e o CD em que se baseou a edição era o Baby Boom, dos Papas da Língua. 

 

Lançamento da primeira edição do projeto Toque Igual ao Disco, com a banda gaúcha Papas da Língua, na Pop Rock FM, programa Cafezinho

 

Pomba:  Sua trajetória mistura São Paulo e Rio Grande do Sul. Como você diferencia o meio musical nesses estados?

Saulo: Obviamente a movimentação do meio musical paulista é mais forte. O que não quer dizer que seja a melhor, nem que atualmente no RS o seja. Nos pampas existem tendências predominantes como o gauchesco, que seria o “sertanejo” paulista a grosso modo, mas existiram movimentos mais fortes do que hoje, no rock gaúcho e no blues. Cunhei a sigla ELP – Estados Livres do Prata, imitando o ELP – Emerson, Lake & Palmer, querendo reunir o cenário musical do norte da Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul, que guardam grandes semelhanças de estilo. Falo da virada do século, hoje a coisa mudou no sul. Morei quase 3 anos na região da serra gaúcha, na cidade de Farroupilha, menos de 100 mil habitantes. Ali temos acontecimentos com raízes nas imigrações alemãs e italianas, ecoando, por um lado, a enorme diversidade da cultura musical brasileira, e por outro a sua baixa criatividade, se pensarmos em termos de fusões de gêneros e estilos. Abrindo o leque para o estado do Rio Grande do Sul, temos expoentes como Vitor Ramil ou o Quinteto Canjerana que evoluiram a milonga, temos instrumentistas de ponta com Marcos Trubian e Fernando Noronha, autores/educadores fundamentais como Julio Herrlein, e jornalistas/músicos excelentes com Arthur de Faria. Sendo sincero, e sem sentimentalismo, a situação musical do RS o torna mais propenso a um salto evolutivo que SP teria mais dificuldade a dar. Como mineiro, mas aculturado, não vou ficar no meio. Aposto no RS.

Pomba: Como decidiu participar do ensino digital de música, onde você foi um dos pioneiros.

Saulo: Foi uma decisão natural, por ser a música a arte que talvez tenha mais a evoluir com o digital. Costumo arranjar críticas quando me recuso a aceitar plenamente o cinema como arte por si só. Prefiro aceitar o cinema como fusão de teatro e música, com ajuda da fotografia. Como diria Eric Bentley, “A tela tem duas dimensões e o palco três: a câmera pode nos mostrar todo tipo de coisa – de close-ups de insetos a panoramas de montanhas – o que o palco nem pode sugerir. Mas o palco nos revela a beleza insuperável das formas tridimensionais, e o ator no palco estabelece entre ele e seu público um contato real como a eletricidade…” E também acredito que o som tem um papel além da arte, como ciência, e mais; em uma fusão de ciência e arte, capaz de arrastar as outras artes para uma situação de paridade científica. Participar de uma educação que mostre este caminho desde os primeiros passos de um iniciante de instrumento musical, até os múltiplos procedimentos da verdadeira musicoterapia é uma tarefa do meu cotidiano. Fui buscar inspiração (arte) e confirmação (ciência) em cientistas como Einstein, revolucionários da psicologia como Wilhelm Reich, grandes pedagogos musicais como Conrado Silva, compositores eruditos contemporâneos, pesquisadores e, principalmente nos alunos. É tarefa dos atuais professores mostrar a uma geração de prováveis ignorantes musicais como podem se tornar grandes compositores, se souberem usar seu smartphone para a música, e não para postar nas redes sociais.

Pomba: Analógico ou digital? Prós e contras. 

Saulo: O assunto pode tomar o caminho técnico ou prático. Vou pelo prático: sempre usei uma analogia para explicar as funções de dois transdutores – o microfone e o alto-falante – como sendo dois eletrodomésticos – o freezer e o microondas – sendo o “congelamento” a situação de um material congelado na entrada e descongelado na saída. Sempre dei mais importância ao material em si do que sua embalagem. Acho ainda prematuro eleger o digital. Se pensarmos em termos de protocolos desde o MIDI até o DANTE, o assunto evoluiu muito. Mas temos que considerar o envio de sinal wireless, os problemas do áudio via Bluetooth, o Noise Cancelling e outros problemas ainda sem solução digital, sequer analógica. O próprio bom e velho MIDI está passando por uma revisão. Continuando pelo caminho do prático, o que realmente interessa na música é o conteúdo. O áudio é um meio de transmissão do som, e nada mais. Há quem consiga, usando poucos recursos, compor uma estrutura de timbres inédita, usando digital e analógico. Mas há quem não consiga, com equipamento de ponta, produzir 8 compassos que atraiam a atenção de 4 pares de ouvidos. Da mesma forma que existem alunos capazes de superar dificuldades técnicas com equipamento analógico, com resultados que superam milhares de dólares em equipamento digital. Resumindo, não interessa o MEIO pelo qual se consegue um RESULTADO, mas o meio pelo qual o resultado não se torne um MEIO-RESULTADO. 

 

A revolucionária interface, patchbay e sincronizadora de áudio e vídeo Unitor8, que rodava em Macs e PCs com Windows 95/98, no advento da era digital

 

Pomba: Quais são as tendências atuais na área da música digital e por computador?

Saulo: Sem dúvida o momento é do software. Os equipamentos chegaram a um ponto de estabilização, a não ser pelos exageros da indústria com suas obsolescências programadas. O desenvolvimento de aplicativos já adentrou as entranhas da inteligência artificial, a ponto de termos, como sempre na comercialização, alguns exageros, como as mixagens e masterizações online de qualidade sofrível ou duvidosa. Tenho ouvido muitos alunos se preocuparem mais com plug-ins do que plugs. O resultado costumam ser ruídos causados por plugs P10 mono tentando obter resultado de TRSs, enquanto o acorde que deveria ser diminuto ser meio-diminuto. À parte tais exageros, temos a chegada de recursos acessíveis, como os de monitoração in-ear via wi-fi de celulares como o Soundcaster, apps audio-to-MIDI sem delay como o Jam Origin MIDI Guitar 2, até DAWs gratuitas como o Studio One Prime 5. Não é mais necessário gastar uma grana preta com equipamentos, mas é importante estudar, se aprofundar e dominar técnicas de procedimento, e não de equipamento. A formação e educação musical foram muito beneficiadas com a música no computador, tornando o estudo fácil e divertido. Até mesmo a antiga aversão à leitura e escrita de partituras está caindo por terra, quando os alunos podem “ver” na tela o som que está sendo representado. E o melhoramento dos smartphones e tablets está tornando possível para muita gente o que antes só podia ser feito no computador de mesa ou notebook.

Pomba: Como foi a sua experiência com o projeto CMIJ, em que a Pauta entrou como parceira com a Dynamite e voltando depois de uma década?

Saulo: Em meados de 2009 Pomba me convidou para coordenar um projeto ótimo, que atenderia à inclusão social de milhares de jovens em São Paulo/SP. Era o Centro de Música e Inclusão para Jovens – CMIJ, pelo PROAC-SP, patrocinado pela Pepsico. Comecei a participar procurando por um imóvel a ser alugado, pois a dimensão do projeto exigia. Encontrado o prédio de 3 andares na rua 13 de Maio, na Bela Vista, arregacei as mangas e carreguei peso de uma forma que adorei. Reformamos todo o imóvel, mesmo com o projeto já em andamento em ONGs vizinhas. Foi construído um palco no térreo, salas e instalações nos andares superiores, muitas doações, parcerias e compras com descontos aparelharam o edifício, que passou a receber alunos para cursos de instrumentos, DJ, teatro e produção musical. Contratamos cerca de 15 professores, 2 para cada instrumento, entre eles destacando Gê Cortes, baixista, Demma K, guitarra, Paulo Lion, bateria e outros profissionais de alto nível. Eu passava o dia inteiro nas atividades, nas aulas e fora delas, com o prazer de estar fomentando e motivando muitos jovens a seguirem o caminho das artes. Não menor é o prazer de estar agora em pleno 2020, voltando ao projeto, como professor multidisciplinar, e à distância, um novo desafio que, a exemplo do anterior vamos vencer e continuar sempre. As aulas serão na plataforma online Zoom, com diversas parcerias. 

 

Primeira turma de Produção Musical do projeto CMIJ, recebendo os certificados no auditório da Roland Brasil, na rua Teodoro Sampaio, em São Paulo

 

Pomba: Como você analisa o momento político atual e o setor cultural?

Saulo: O planetinha azul chegou a um momento interessante, como, por exemplo, com a obsolescência dos sistemas políticos de representação. A Internet chegou rapidamente neste assunto, causando mudanças que, sem ela, demorariam séculos. A pandemia age como um fermento nessa receita. O setor cultural foi atingido em cheio, pelo fator audiência ao vivo. A música até foi menos atingida, em comparação com o teatro, por exemplo. Acredito que a política vá sofrer maior transformação do que o setor cultural. Curiosamente, o setor cultural vai se adaptar, a meu ver, mais rapidamente do que o político. Talvez pelo fato da cultura sempre precisar se adaptar, logo, desenvolveu modus operandi próprio. Acho que o homem (e a mulher, sem o machismo de sempre na linguagem até…) não é um “ser político” e sim um ser cultural. Muita gente da minha idade (6.5) anda chorando de saudade dos anos 60, 70, 80, 90, coisas do século passado. Eu não trocaria viver esse momento por nenhum outro, talvez pelo Renascimento, ou melhor, pelo Gênesis, não a banda de rock progressivo, mas pelos tempos descritos na tal de Bíblia, aquele livro que ninguém teve coragem de assinar, cujo primeiro capítulo descreve uma situação na qual eu sempre desconfiei que a música estivesse envolvida, quando diz: “no princípio era o verbo”. Acho que esse tal de “verbo” não é nada mais, nada menos, do que o som. E dele todas as coisas foram feitas…

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