A música iniciou imitando sons da natureza. Hoje, é a inteligência artificial que tenta imitar o trabalho dos humanos. Até onde chegará tudo isso?
Entre 35 a 15 mil anos Antes de Cristo, há registros da utilização do arco musical, porém instrumentos percussivos e também o canto, assovio, e apitos rudimentares, vêm de tempos imemoriais.
A música se iniciou como forma de expressão, inteligência, e inclusive de culto religioso e celebrativo humano, muito antes do próprio estudo normativo da mesma e da própria teoria.
A própria matemática é a expressão do mundo manifestado, sendo o matemático um observador que explica apenas o que se percebe, e suas possibilidades, o mais precisamente possível em forma e funcionalidade.
A natureza já exibia claramente desde sempre, a Sequência de Fibonacci, e o mesmo apenas a percebeu e a descreveu.
Outrossim, o ser humano primitivo, muito antes da matemática e compreensão de música, já fazia música quando mimetizava, muitas vezes, o canto do pássaro, a força do trovão, e o gotejar ritmado da chuva.
A definição que estudiosos usam sobre teoria musical que mais se adequa é a de explicar o que o músico culturalmente já iniciou em aplicação instintivamente, para teorizar o “porque” e o “como” e, a partir daí, normatizar.
Como pessoas que produziam estes sons, passavam essa informação a diante de forma oral e eles mesmos foram os elaboradores dos primeiros instrumentos. Houve com certo tempo decortido, um status social que foi sendo atribuído aos que melhor realizavam suas tarefas dentro dessa disciplina de encantamento sonoro.
Embora a música que desenvolveu-se na cultura ocidental em verdade se firme nos estudos de Pitágoras e seus discípulos, há narrativas muito antigas de harpas e similares, e a dúvida é se o trabalho de Pitágoras e seus discípulos não teria sido observação e o regrar do que já ocorria instintivamente, em explicação técnica e teórica, matematicamente precisa (assim como fez Fibonacci matematicamente na explicação de ocorrências naturais observáveis), ou ainda, talvez, era extensão dos conhecimentos aprendidos com Hermes Trismegisto (aí a história vai longe, podendo chegar no mito de Atlântida), porém houve povos que exploraram a questão sonora de outra forma, paralela a “matriz grega de pensamento”, e se reflete claramente até hoje essa percepção, por exemplo, no microtonalismo de escalas e instrumentos de diferentes culturas.
Tudo, absolutamente tudo que a música ocidental normatizou como teoria, inicia-se em Guido D’Arezzo, que era um monge italiano estudioso, com acesso à conhecimentos da Grécia e povos antigos, suprimidos pela igreja da época (intimamente, de forma quase fantasiosa, eu o visualizo como o personagem de Sean Connery no filme o Nome da Rosa), e quando Guido inicia seu postulado e ações na música, a igreja, propositadamente, lhe atribuiu a “invenção da música”, e embora Guido tenha mantido os nomenclaturas Gregas e suas explicações de centros tonais, era importante para igreja da época esse “marketing”, porém nos povos fora deste círculo cultural, alheios a isto, toda teoria se desenvolveu de forma diferente, como no hinduísmo por exemplo, mas como músicos com o passar do tempo, mesmo antes de Pitágoras, tinham atuações grupais, sempre havia “diálogos” de afinação e harmonia em comum…
Guido ao criar (esse foi seu grande legado) a notação musical, suas regras e “alfabética”, trás toda uma era de comunicação de ideias entre músicos, e a possibilidade de passar conhecimento de música à diante, sem necessidade da oralidade somente, elevando a linguagem sonora da música a um patamar de comunicação que pode ser estudada e reproduzida, e depois disso, com muita história ainda, pois isso é um resumo, vem todo o resto.
Mas porque eu pontuei tudo isto?
Porque de fato, se avaliarmos a função social do músico historicamente, seu sustento na antiguidade sempre dependeu dos líderes (reis, nobreza, sacerdotes) que os “sustentassem”, tanto em trabalho, como custear-lhes estudo, e em contra partida, esses privilégios só eram mantidos pelos que realmente eram os melhores em sua época, e não era uma questão tão simples o estudo da música economicamente.
Quanto mais as ciências e tecnologia democratizaram a “entrada” no mercado musical, e a música como negócio cresceu, seja no ensino, luthieria e entretenimento, mais foi se gerando a possibilidade das pessoas aprenderem música em toda a sociedade, mas ainda assim, havia a necessidade de estudar, e esse era o limiar meritocrático, onde para haver êxito era imprescindível o esforço.
A mediocridade não tinha espaço nessas cátedras
Mas aí, nesse ponto, inicia-se a trapaça das “panelinhas” que afogaram a questão meritocrática, pois no limiar entre o gênio e o ordinário (no sentido de comum), a vaidade, a soberba, o “interesseirismo”, e ainda na questão do mercado a aparência do artista como produto, passaram a ser fatores decisivos para alcance de oportunidades, com o talento sendo colocado apenas como um fator a mais, porém não determinante de sucesso.
Quando há pouco tempo, a tecnologia possibilitou a qualquer um fazer música sem músicos, afinando a voz, e fazendo copy/paste de áudios já existentes, já era um sinal vermelho que estaríamos perdendo a música como profissão e como mercado.
Agora com o surgimento de sites de I.A. que não só compõem, mas geram áudios prontos, com todos os instrumentos, vozes e letras, utilizando-se de semelhanças que beiram o plágio, mas pior ainda, pois estão “roubando” vozes e timbres, cada vez menos importará para o destaque de alguém na grande mídia a habilidade e competência e sim aparência, e em breve nem isso, porque na realidade a I.A. já está gerando filmes e atores virtuais e clonando os que existem.
Roteiros são criados por algoritmos, que desenvolvem storyboards, que são base para geração de imagens, renderização 3D, e tudo com criação fora da alçada do raciocínio humano.
A música no mercado audiovisual se tornou apenas um processo, não uma finalidade.
A ânsia da perfeição ao robotizar a afinação e métodos de trabalho musical, aproximou os robôs da imitação perfeita do talento.
Era inevitável que a permissividade da preguiça em interfaces que tudo fazem, esmagasse tudo ao baratear a arte, retirando o custo do fator humano.
A música perderá o valor porque as pessoas serão capazes de serem contentadas em suas necessidades aculturadas, imediatistas, sem se importar se alguém tem habilidade na execução de tarefas que levam ao que lhes é aprazível.
Se da abundância de notas, chegamos a bundas sem talento, em breve nem isso terá relevância.
E do arco musical, citado inicialmente no texto, desembocamos na realidade da música sem arco (nem de início, nem de meio nem de fim).
Esse depender da tecnologia como vício, nos levou a viver em função dela.
Há quanto tempo você não imprime fotos? Há quanto tempo você não capta uma imagem sua sem um filtro de retoque? Se a imagem está perdendo a realidade dos fatos, era óbvio que o áudio perderia sua veracidade.
Tudo se tornou relativo, e poucos são capazes de entender.
Basta uma tempestade solar épica, e grandiosamente destrutiva, para uma era de extinção digital, colocar toda sociedade humana sem ter onde escorar sua preguiça intelectual.
Se tudo se inicia com um assovio imitando a natureza, terminará com a natureza mostrando que não há substitutos para ela, nem mesmo para seus “produtos”, como a evolução da genialidade e talentos humanos, que não são artificiais.
A alma nunca será um algoritmo. A meritocracia nunca deixará de ser regra para inteligência real.