Ministro Raul Araújo pediu vista, com o objetivo de analisar melhor a matéria e estabelecer limitações às paródias
Tudo começou quando, em 2014, o Deputado Tiririca usou a composição ‘O Portão’, de autoria de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com alterações e sem autorização na campanha política para sua reeleição. Na propaganda eleitoral, Tiririca aparecia caracterizado como Roberto Carlos e entoava: “Eu votei, de novo eu vou votar. Tiririca, Brasília é o seu lugar”.
A EMI Songs do Brasil (atualmente propriedade da editora Sony/ATV), propôs ação reparatória de danos materiais e o impedimento para não permitir a utilização da mesma, na qual sustentou ser titular dos direitos patrimoniais da composição.
O parlamentar chegou a ser condenado, mas em novembro de 2019 a 3ª Turma do STJ anulou essa decisão, por entender que Tiririca não teria de indenizar a gravadora por direitos autorais.
Leia o processo: STJ – Consulta Processual
Segundo o colegiado, a paródia é uma das limitações do direito de autor, com previsão no artigo 47 da Lei 6.910, de 1998, lei dos Direitos Autorais, que prevê serem livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.
A Corte lembrou que, respeitadas essas condições, é desnecessária a autorização do titular da obra parodiada.
“Há um óbvio erro de entendimento do STJ. O tema aqui é que a criação artística e intelectual é protegida pela Constituição. Não se pode estabelecer um uso livre de obras criadas por outros sem ferir esta proteção.”
— Sydney Sanches – assessor jurídico da UBC
Novo julgamento das Paródias
Nesta quarta-feira, dia 9 de fevereiro, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou o embargo de divergência no Recurso Especial 1.810.440.
O relator, ministro Luís Felipe Salomão, chegou a emitir o seu voto, no qual não acolhe plenamente os argumentos dos autores, mas pelo menos estabelece condições para as paródias.
Em seguida, o ministro Raul Araújo pediu vista, com o objetivo de analisar melhor a matéria e estabelecer limitações às paródias em outros âmbitos que não o político.
Quanto ao mérito, o relator, ministro Luís Felipe Salomão, em voto de quase 50 minutos, detalhou a densidade do conflito entre a liberdade de expressão e o direito autoral.
Segundo o ministro relator, mesmo que a finalidade seja de uso eleitoral, comercial ou publicitário, a legalidade da utilização da paródia dependerá de:
- existência do grau de criatividade;
- ausência de efeito desabonador da obra originária;
- respeito à honra, intimidade, imagem e privacidade de terceiros;
- observância do direito moral de ineditismo do autor da criação primeira;
- atendimento da regra do teste dos três passos, que viabiliza o exercício de reprodução por terceiros não autorizados, em casos especiais que não conflitem com a exploração normal da obra, nem prejudiquem injustificadamente os interesses legítimos do autor.
Nessa linha, concluiu que a paródia de Tiririca é “extremamente satírica” e satisfaz “todos os requisitos objetivos, não tendo sido apontado na inicial qualquer constrangimento de índole moral, psicológica, politica, cultural ou social atentatória de direito existencial defluente do postulado universal da dignidade da pessoa humana”.
De acordo com o site da União Brasileira dos Compositores (UBC), o advogado Sydney Sanches, especialista em direitos autorais e assessor jurídico da UBC, não há prazo para que o julgamento seja retomado. Isso só ocorrerá depois de o ministro Araújo analisar o processo.
“O voto do relator, se não foi favorável aos autores, pelo menos limita um pouco as paródias ao exigir três condições: que elas tenham um uso excepcional, claro conteúdo criativo e não causem prejuízo aos titulares. Este último é um ponto interessante e ao qual podemos nos ater na hora de questionar os usos de músicas em paródias que não tiverem autorização”, explica Sanches, para quem, mesmo no caso de uma decisão desfavorável ao final do julgamento, caberá recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF).
“O problema é quem escreveu a delimitação do direito do autor e aprovou a lei, o fez por conveniência própria. Quem julgou o caso, faz a luz da lei e não pelo entendimento de quem é autor”, manifesta Daniel Neves, presidente da Associação Nacional da Indústria da Música (ANAFIMA).
“Uma decisão inexplicável. O absurdo chega ao ponto de fazer com que o autor veja, passivamente, sua obra associada a iniciativas repulsivas contra as quais lutou toda a sua vida como artista e cidadão”, criticou na época Aloysio Reis, diretor-geral da Sony/ATV Music Publishing Brazil.
Artistas reclamam do uso de paródias
Na busca da justiça, quase 400 artistas divulgaram a assinatura de um manifesto poucos dias antes do julgamento no STJ condenando o uso de músicas em paródias sem a devida autorização dos autores.
Nomes como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Carlinhos Brown, Lulu Santos, Zeca Pagodinho, Rita Lee, Emicida entre outros firmaram o documento.
Leia o manifesto dos artistas.
MANIFESTO DA CLASSE ARTÍSTICA ACERCA DO USO DE PARÓDIAS EM CAMPANHAS POLÍTICAS
Os compositores e artistas que abaixo assinam vêm tornar pública sua extrema preocupação com o julgamento do ERESP 1.810.440, em curso no Superior Tribunal de Justiça, que irá julgar, no dia 09/02/2022, se o uso alterado de canções em programas políticos deve ser considerado uma paródia e isento de autorização e pagamento de direitos autorais.
A decisão se dará em processo judicial onde se discute se foi regular o material de campanha político do candidato Tiririca, que se apropriou da famosa música “O Portão”, de autoria de Roberto e Erasmo Carlos, para produzir o seguinte refrão: Eu votei, de novo vou votar, Tiririca, Brasília é o seu lugar.
Até hoje nunca houve dúvida de que o uso de obras musicais com finalidades políticas, mesmo que modificadas letras e/ou melodias, sempre dependeu de autorização prévia do titular de direitos autorais. Ou seja, jamais cogitou-se enquadrar como paródia. Entretanto, para surpresa da classe artística, esse entendimento histórico poderá ser modificado e admitir os usos indiscriminados das obras musicais com fins eleitorais, usurpando a gestão dos autores sobre suas criações. A paródia está prevista na lei de direitos autorais, a fim de preservar a liberdade de expressão, assegurar a livre opinião, a crítica, a sátira, o humor, a diversão, a arte, enfim, permitir a livre manifestação desde que não venha gerar prejuízo ou descrédito ao criador e sua obra. É uma exceção, de caráter efêmero, que deve ser interpretada sempre associada à circulação das ideias, conforme concebeu o legislador. No caso de prevalecer o entendimento desfavorável aos criadores haverá irreparável lesão aos direitos pessoais e às opções ideológicas, em razão da interferência nos direitos inalienáveis dos autores, que terão suas criações artísticas – verdadeira extensão de suas identidades – atreladas a valores, opções, ideologias ou governos eventualmente contrárias às suas convicções. Um verdadeiro risco à integridade do sistema de proteção aos direitos autorais.
O uso de paródias de obras musicais em campanhas eleitorais, sem autorização prévia, será um ilegítimo passaporte para alavancar candidaturas e interesses político partidários. Além de atingir os direitos morais dos criadores, que ficarão privados de de fazerem suas livres escolhas políticas ou ideológicas, servirá para distorcer o processo eleitoral e enganar os eleitores, com graves reflexos na democracia brasileira. As consequências são seríssimas e a questão reclama a imediata mobilização de toda classe artística e da sociedade civil, no sentido de rogar ao STJ, que julgue na preservação dos direitos autorais dos criadores e na defesa de eleições rígidas e transparentes!