Conheça o projeto Sol Maior, que se especializa na inclusão social pela música e outras artes.
Andares abaixo do conhecido Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no Multipalco, já citado em outros artigos aqui na Música & Mercado, se instalou a Sol Maior, especializada na inclusão social pela música e outras artes, mais precisamente voltada para crianças e adolescentes em estado de vulnerabilidade social. Sobre o trabalho da Sol Maior fui falar com o Daniel Portilho, que nos conta a trajetória dos trabalhos nesse sentido.
Agora são outros quinhentos
No Multipalco, o projeto começou em 2012 com 50 crianças uma linha do tempo de atendimentos, chegando gradativamente a 75, 100, 125, 150, e hoje com 160 crianças e adolescentes. Mas com o projeto atingindo mais de 525 em todas as ramificações do Sol Maior. Na região da Vila Farrapos, com 17 vilas no entorno são 265 jovens, parceria com a ACBERGS, e por volta de 2022 outra parceria com o MDCA na região da Antônio de Carvalho, com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, tirando estes jovens de um círculo vicioso de vida.
“Fazemos da música nossa principal ferramenta que vai de encontro às famílias e suas necessidades, lutando contra o círculo vicioso de vida, pois infelizmente para a gurizada é uma repetição de histórias, do irmão ou de cada um que não teve uma oportunidade, até que encontra essa oportunidade no centro da cidade, pois a visão de vida se amplia saindo daquele mundo tão restrito”, conta Daniel.
Casos de emancipação
Portilho continua explicando: “Posso dar exemplos bem claros: uma menina que iniciou em 2014, quando fazia trufas para ajudar na renda familiar, moradora da Vila Dona Teodoro – um dos berços da drogadição em Porto Alegre – o sonho dela era trabalhar para poder ajudar os pais, e na primeira oportunidade que a gente conseguiu com o projeto Jovem Aprendiz, pela LATAM, resolvemos encaminhar a Andriele Wieczorek, e hoje ela é comissária de bordo, terminando o curso de piloto, me manda os vídeos da escola de aviação, vai ser uma piloto. Alguém que nós acreditamos, saiu da condição de vulnerabilidade”.
“Outro caso é o nosso educador Esthevam, que foi usuário do projeto, teve várias dificuldades familiares, um menino que era muito agressivo, muito violento, mas que encontrou na dança uma maneira de se expressar melhor, tranquilizar o coração e levar uma outra vida. Hoje ele é nosso professor, nosso educador contratado, tem um salário bom, uma carga horária bacana, trabalha no Multipalco e nas outras ramificações nas comunidades da Sol Maior”.
“Que vai além da música. As pessoas dizem que é um projeto musical, mas não é, a música é uma ferramenta para que eles possam ter o exercício pleno da cidadania, viver com mais dignidade. Eu fico realizado, porque se criou o projeto para isso, para ver esse crescimento dentro do processo que a chamamos de emancipatório dos nossos educandos. Que eles saiam daqui já encaminhados para ter um futuro melhor”.
Instrumentos gratuitos
“Quanto à obtenção dos instrumentos musicais, colocamos nos projetos toda a nossa demanda, via Lei Rouanet, Funcriança, editais públicos. Mas sabemos que são processos mais burocráticos; um edital público é recebido em um ano e temos que gastar no outro ano, quando é aprovado, e que todos os valores colocados já não batem mais com os valores atualizados. Aí a não conseguimos mais comprar 10 violões e temos que comprar 5. Mas conseguimos uma rede muito grande de apoiadores através dos nossas redes sociais, que dão uma visibilidade maior ao projeto e as pessoas ligam pra doar um instrumento, isso acontece muito”, disse Daniel.
Pandemia enfrentada
No ápice da pandemia, o projeto levou instrumentos para emprestar aos alunos das comunidades, para ficarem estudando, utilizando em casa. “A pandemia foi um divisor de águas para a Sol Maior e para o mundo. O divisor de águas para nós nem foi num bom sentido, infelizmente tivemos que nos adaptar a uma nova realidade. É difícil criar um universo virtual sem que as famílias consigam acessá-lo”, comentou.
“Nosso impacto naquele primeiro momento foi o desafio de que pudéssemos dar conta de demandas emergenciais voltadas à subsistência dessas pessoas, garantir acesso à alimentação, como por exemplo com mais de 22 toneladas de alimentos, vale-gás, etc. Depois cuidamos de atividades lúdico-pedagógicas, adaptamos atividades virtuais para aqueles que poderiam ter acesso e outras para aqueles que não poderiam”.
Levaram assim atividades junto com uma colega assistente social até a porta das casas, máscaras e álcool-gel, kit-lanche para as crianças, e aos poucos foram flexibilizando a retomada das turmas e até tiveram um showzinho no Theatro São Pedro com público reduzido. “No final de 2020 fizemos uma live do nosso espetáculo que acontece todo ano. Com as inseguranças de recursos tivemos adequações da equipe, as empresas não lucravam começavam a cortar investimentos, acabou se demitindo alguns colegas, mas se readmitindo depois nas retomadas para permitir a excelência nos investimentos”.
“Em 2021 fizemos talvez o nosso melhor espetáculo anual, chamado Janelas, refletindo o olhar das pessoas sobre o mundo, sobre como a pandemia nos fez mostrar como de fato somos. Em 2022 voltamos com grupos presenciais menores, e em abril e maio retomamos as atividades com todos os cuidados. Cuidados estes que mantemos até hoje”, explicou Portilho.
Música erudita
Dentro da Sol Maior é promovido um espaço de oportunidades para se conhecer os instrumentos eruditos, mas o trabalho efetivo com estes instrumentos é feito pela Orquestra Jovem do Theatro São Pedro, na qual o pessoal é remunerado. “Na Sol Maior nós trabalhamos com os instrumentos populares, nossa “orquestra” é diferente, com percussão, flauta, baixo, guitarra, violão, bandolim, cavaquinho, teclado e piano”.
“São projetos diferentes, mas eu sinto que falta uma conexão, embora sejam finalidades diversas. A Sol Maior é 100% inclusiva para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O projeto da orquestra acho que tem uma linha muito mais preparatória para o espaço da música, para dar uma continuidade e carreira, sendo um pouco mais seletivo”, disse.
“Temos que ser realistas, tem mercado, e ao mesmo tempo é um mercado muito mais fechado. Por exemplo, os músicos que são solicitados geralmente para os grandes shows são os músicos que já fizeram seus nomes conhecidos. Por isso a mostramos que a música, em muitas de suas vertentes, pode ser uma das possibilidades”.
“Precisamos ensinar outras coisas, mas o que a gente faz na Sol Maior é preparar para a vida. A regente de nosso coral juvenil, infanto-juvenil – Dani Barsoti – costumava dizer: “Para aqueles que acham que não dá pra sobreviver com música, eu digo que dá sim, sou uma regente, bem sucedida, estou regendo vários coros, e tenho um salário que me sustenta, tenho autonomia”. Hoje nós temos outro regente fabuloso, que é o Manuel Abreu, com trabalho igualmente significativo com sua atuação na Sol Maior e suas outras tonalidades”, concluiu Daniel.
A volta dos que não foram
Música & Mercado vai continuar atenta aos acontecimentos culturais em Porto Alegre, em várias frentes, sendo a do Multipalco uma das mais significativas. Agora com a retomada do trabalho com Arte & Cultura, digamos, quase pós-pandemia, é o momento certo para divulgar este retorno, o de quem passou por fortes dificuldades, mas foi resiliente.
Em uma de suas andanças pelos bairros onde se concentram as atividades artísticas, e o tutti cultural, este que vos escreve se deparou com uma placa na Rua da República, uma das principais do conhecido bairro Cidade Baixa, que resume bem a tarefa de resiliência demonstrada em qualidade alta… Mãos à obra!