O público se vê em quarentena dentro de casa, começam a mudar seus hábitos, não conseguem ficar sem música ou outras formas de arte nem um dia sequer, mas será que estão realmente pensando no trabalho e valor de todos os artistas e profissionais envolvidos?
Invisível aos olhos humanos. Aloja-se dentro de nós, ataca nossa fonte de oxigênio. Confunde a nós mesmos fazendo nossas células reproduzirem aquilo que nos faz mal.
A reação do corpo em tentativa de defesa agrava a situação, o que faz nós próprios nos atacarmos e piorarmos a situação. Atinge a todos sem ver cor de pele, dinheiro no banco ou crenças.
Consequência dos nossos hábitos, das nossas relações com os outros e com a natureza e do sistema exploratório que criamos para viver em todos os sentidos e níveis.
Um vírus e/ou o próprio ser humano? Parece que a natureza biológica da crise tem muito a nos dizer sobre nós mesmos e o caminho que trilhamos até aqui.
[blockquote style=”3″]A falta de empatia talvez resida em querer de graça a única coisa que tais artistas têm a nos oferecer: seus shows, suas vozes e suas canções.” - Renato Gonçalves, 2020.[/blockquote]
O Covid-19 assola nosso planeta há apenas alguns meses, mas seus danos e consequências já são sem precedentes. Pessoas do mundo inteiro e praticamente todas as indústrias sentem grande impacto e turbulência (a economia criativa e a indústria da música que o digam).
As reflexões começam a acontecer e possivelmente ficarão para o resto de nossas vidas. O “normal” (que já não era tão “normal” assim, convenhamos) já não existe mais e assim abre-se espaço para algo novo.
É momento de reflexão e transformação porque do jeito que estava não dá mais para ser. Para quem ainda não estava claro isso, o Covid veio escancarar.
Que mundo queremos viver? Como queremos nos relacionar com as outras pessoas, a natureza, trabalho, estudos, vida e nós mesmos? Como nossos hábitos afetam as nossas vidas individual, coletiva e sistemicamente?
O que é realmente essencial nas nossas vidas e qual real valor damos a elas? Não só na teoria, mas principalmente na prática.
Não consigo pensar nos impactos do Coronavírus na indústria da música separados desses olhares e questionamentos. Já são milhares de cancelamentos de eventos e shows com previsão de prejuízo de dezenas de bilhões de dólares para o ecossistema no mundo
inteiro.
Só no Brasil são mais de 8000 eventos afetados e um prejuízo estimado de mais de 480 milhões de reais segundo pesquisa da DATA SIM (dados referentes às 536 empresas que responderam a pesquisa), com projeções estatísticas que chegam em um prejuízo estimado das “MEIs da Música ao Vivo” de 3 bilhões de reais impactando cerca de 1 milhão de profissionais (considerando as 62 mil MEIs registradas no Ministério da Fazenda como empresas de Produção, Sonorização e Iluminação). Nós artistas nos vemos de uma hora para outra sem sua principal fonte de renda, os shows, sem previsão clara de volta e nesse meio tempo tendo que se reinventar e desdobrar para conseguir pagar as contas e manter um mínimo de saúde mental.
[blockquote style=”3″]Será que temos a real percepção de valor e de tudo o que envolve o trabalho de um artista?[/blockquote]
O público se vê em quarentena dentro de casa, começam a mudar seus hábitos, não conseguem ficar sem música ou outras formas de arte nem um dia sequer, mas será que estão realmente pensando no trabalho e valor de todos os artistas e profissionais envolvidos? O poder público não se preocupa muito pelo silêncio e letargia em que encontra-se.
A vulnerabilidade, as lacunas, as desigualdades e processos que precisam melhorar de nossas profissões e ecossistemas criativos estão escancaradas. Vejo este ciclo como oportunidade para amadurecermos, colaborarmos e criarmos mais, sair das nossas zonas de conforto para expandirmos como pessoas, profissionais e sistemas criativos.
Como nossos recursos disponíveis no momento são no ambiente digital para darmos aulas, workshops, fazermos lives, produzirmos músicas e vídeos, torna-se fundamental finalmente estudarmos a fundo como funcionam as plataformas de streaming, as agregadoras digitais, as mídias sociais, as editoras musicais, os direitos autorais, as coletoras de direitos autorais, o ECAD (Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais) e todo o fluxo da cadeia de valor da música gravada.
Assim, entenderemos como trabalhar melhor para termos mais retorno de desenvolvimento de público e financeiro também, evoluindo nossa relação e trabalho com pontos do ecossistema que nós artistas geralmente temos dificuldades e pouco conhecimento.
Além disso, passamos a ter mais clareza e consciência das dinâmicas saudáveis e exploratórias de nosso sistema, suas práticas, processos, estruturas e agentes.
Por exemplo os problemas de baixa remuneração e processos complexos do ambiente digital da música que trazem dificuldades e muitas vezes pouco retorno, ou os muitos contratos exploratórios que ainda circulam entre artistas e outros agentes da indústria.
Podemos, inclusive, passar a perceber mais a influência desse sistema e seus jogos de poder na maneira como ouvimos e percebemos a música e os artistas atualmente.
Entender que reflexos, hábitos e ideias nos alimentam e condicionam muita vezes sem nem nos darmos conta. Mas aí encontra-se a oportunidade de estudarmos, aprendermos e refletirmos para transformar e melhorar coletivamente na direção de um ecossistema mais justo, equilibrado e próspero para todos. O que seria isso exatamente eu não sei, mas aí é que está, vamos pensar e fazer juntos!
Quando falo de fazermos juntos penso em outro impacto importante que podemos aproveitar dessa crise, o desenvolvimento de nossa consciência de classe artística para nos unirmos e lutarmos por políticas públicas e uma valorização realmente sistêmica das artes e dos artistas. Os dados mostram a relevância não só social, cultural, histórica, mas também política e econômica da música.
Países como Inglaterra, Alemanha, Holanda são exemplos de como é relevante e impactante esse tipo de tratamento e ações para/com as artes, a música e os artistas.
Suas políticas públicas, órgãos governamentais focados no mercado da música e todas as ações que estão fazendo nessa crise para arrecadar fundos de emergência para a economia criativa como um todo, em suporte a nós artistas, produtoras e empresas do setor, são referências.
Uma real transformação estrutural passa pela valorização, organização e ação do poder público de forma horizontal.
“A diversidade de áreas de atuação das empresas e o enorme percentual de fornecedores e terceirizados implicados na cadeia produtiva da música demonstram que a organização produtiva é complexa e requer medidas diversificadas, amplas e estruturantes, pensadas coletivamente, e que não se restrinjam a segmentos específicos da extensa cadeia produtiva da música. (…) No Brasil a falta de uma entidade de âmbito nacional que dialogue com todos os segmentos produtivos, somada à fragilidade institucional das instâncias governamentais, têm impedido que ações sistêmicas e efetivas sejam encaminhadas com a urgência necessária” - Data Sim, 2020.
Em meio a tantos impactos, reflexões, questionamentos e pontos a serem trabalhados, também percebo o público como fundamental para completar as transformações. Sem artista e sem público não existe o mercado da música.
Logo, os amantes, ouvintes e consumidores de música também precisam refletir nessa crise sobre como relacionam-se conosco, nossos trabalhos e as diversas formas de trocas que acontecem.
Não é só uma questão de valor material, mas também de percepção real de todos os outros valores como humano, social, cultural, político e até nutricional da música (sim, a música tem diversos efeitos terapêuticos e medicinais comprovados por diversas pesquisas científicas). Será que temos a real percepção de valor e de tudo o que envolve o trabalho de um artista?
Uma música gravada, um vídeo lançado? Será que realmente demonstramos na prática e estamos dispostos a retribuir das mais diversas formas todo o valor de tudo o que envolvem ou estamos acomodados, automatizados, nas facilidades e condições impostas pelo sistema e seus grandes agentes como Spotify e Youtube da vida? Como esses grandes agentes, o sistema e as condições que criam e impõem moldam a maneira que me relaciono com a arte e os artistas?
“A alienação do consumo e da produção musical se dá tanto na ideia de que o streaming no YouTube é gratuito, sem ter em vista que, no fundo, espectadores também trabalham para a ferramenta quando visualizam o conteúdo e ao fornecerem seus dados para a comercialização de anúncios publicitários, quanto na percepção de que se está remunerando de forma justa os músicos e artistas ao se pagar o ínfimo a uma plataforma que, na prática, repassa muito pouco aos seus artistas por cada play. O músico, se for depender da faixa que grava ou da composição que elabora, não sobrevive financeiramente” – Renato Gonçalves, “A valorização da música e a desvalorização do músico”, 2020.
Temos que tomar cuidado com essa onda enorme e fora do normal de conteúdos gratuitos em lives, músicas, vídeos e com nossa sensibilização pela crise para não acabar colocando os artistas e seus trabalhos num lugar exclusivamente de altruísmo e doação.
Para não acabar julgando-os e, sem empatia nenhuma, desconsiderar todos os esforços, tempo, energia e recursos para estarmos onde estamos e fazer o que fazemos enquanto artistas.
“Fazer música, nesta crise humanitária, converteu-se em um sinal de altruísmo, de doação. O artista que não quiser/puder entrar nessa onda de shows gratuitos pode até mesmo ser considerado pouco empático à situação — leitura, inclusive, que já podemos observar em comentários direcionados a determinados artistas nas redes sociais.
Essa cobrança e até mesmo queixa que têm assolado alguns artistas mostra que o público, muitas vezes, está alheio a tudo o que pode envolver o fazer música ao vivo e online, como direitos autorais, cinegrafistas, editores, qualidade de equipamentos de imagem e som etc. A falta de empatia, para usar o termo do momento, talvez resida em querer de graça a única coisa que tais artistas têm a nos oferecer: seus shows, suas vozes e suas canções.” - Renato Gonçalves, 2020.
A arte e os artistas alimentam e sustentam a humanidade das pessoas, são as partes mais humanas de nós e algumas das mais afetadas por toda essa crise. Vejo isso como símbolo da grande vulnerabilidade de nossa humanidade pelo nível de desenvolvimento da consciência que nos encontramos enquanto espécie humana.
Quanto tempo você aguentaria ficar sem ouvir uma música, ler um livro, contemplar uma fotografia, pintura, desenho, dança, escultura, assistir um filme ou uma série? Que olhar temos para as artes e os artistas? Nossas ações estão alinhadas com esses olhares?
Demonstramos na prática o que sentimos por eles ou ficamos só no discurso? Desenvolvendo o paralelo: que olhar temos para a nossa humanidade, para nós mesmos? Quais são nossos valores, virtudes e essências da vida? Nossas ações estão alinhadas com esses olhares para si, o outro e o coletivo? Vivemos aquilo que dizemos que somos, ou estamos enganando a nós mesmos?
Como diria Fernando Pessoa:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas
Que já tem a forma do nosso corpo
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia
E se não ousarmos fazê-la
Teremos ficado para sempre
À margem de nós mesmos”
Fontes:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51891465
https://medium.com/revista-bravo/a-valorização-da-música-e-a-desvalorização-do-músico-c5d409008fd3
https://datasim.info/pesquisas/acesse-relatorio-sobre-impactos-do-coronavirus-no-mercado-brasileiro-de-musica/
https://www.weforum.org/agenda/2020/03/coronavirus-music-covid-19-community/
https://www.cartacapital.com.br/cultura/coronavirus-trara-impacto-forte-aos-artistas-diz-coordenador-do-pro-musica/
https://www.theguardian.com/music/2020/mar/20/im-trying-to-keep-the-panic-down-the-coronavirus-impact-on-music
https://www.billboard.com/articles/business/touring/9323647/concerts-canceled-coronavirus-list
https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/music/features/coronavirus-music-industry-live-music-album-releases-impact-latest-a9449641.html