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Opinião: O clichê do ‘novo normal’ na música

Até que ponto me reinventar é mera perda de tempo, desespero ou questão de sobrevivência em tempos de corona vírus?

Certa vez, tocando num show em homenagem à Maysa, me chamou atenção um trecho da entrevista projetada ao público, em que ela dizia ser grátis a sua arte, mas não o seu tempo.

Eu era da banda de apoio desse tributo idealizado e produzido pelo Thiago Marques, sob direção musical de Ronaldo Rayol e com a participação de vários artistas que admiro.

O termo side man (estruturalmente machista, por sinal, já que nem só homens estão nessa posição) é um desses clichês que gourmetiza o ofício do músico acompanhante.

Ser um deles era meu sonho de adolescente e posso dizer que ainda é: me sinto realizado nos palcos, tocando ao lado dos grandes nomes da nossa música.

Dava um livro. Momentos memoráveis, mas muitas vezes sem o reconhecimento e o olhar de quem mais importava e poderia me legitimar. Não interessa mais.

Realizei meu sonho e ponto. Mas e agora? Até que ponto me reinventar é mera perda de tempo, desespero ou questão de sobrevivência em tempos de corona vírus?

Da repercussão de um post no Facebook surgiu o “Corona Music Lab”, um grupo com mais de 600 membros dispostos a tentar mudar um pouco a lógica do mercado musical.

Talvez esse momento seja a brecha para isso, afinal. São músicos, arranjadores, produtores e artistas da cena independente.

Em parcerias virtuais, sempre compartilhadas num Google Drive, criamos letras que podem ser musicadas (e vice-versa), temas instrumentais e sessões de Logic que vão sendo baixadas e gravadas em casa, no esquema home studio, durante a quarenta. Técnicos e engenheiros de som também têm se proposto a mixar e finalizar o material.

Eis o link e descrição no Facebook: https://www.facebook.com/groups/coronarecords

Nos últimos dias tenho observado muitas iniciativas e ideias no sentido de minimizar o impacto que vamos sofrer com tudo isso. A ópera na janela, o chapéu on-line, as lives, as aulas a distância, o home ócio.

Tudo super válido e legítimo, mas o fato é que dificilmente essas ações vão atenuar a questão financeira a curto prazo. Nem tampouco o que propus no post. Faz tempo que tenho pensado que o que mais nos falta é justamente isso, tempo. E, ao que tudo indica, finalmente teremos teeeeempo pra compor, pensar, estudar, meditar, aprender a cozinhar (aqui falo por mim), mudar velhos hábitos e seja lá o que for.

Na verdade a ideia não é nova nem original. Numa conversa em um post do André Hosoi, percebi a possibilidade dessa troca e, quem sabe, a utopia de uma classe mais unida comece a virar realidade.

A motivação veio da resposta de vocês. E se agora eu parar pra produzir aquela composição de uma amiga ou tentar musicar uma letra? E se alguém ouvir, gravar, lançar?

E se fizermos isso juntos, invertendo um pouco a lógica do sistema? Resolvi criar esse grupo sem nenhuma pretensão de curadoria, créditos ou algo do tipo. Ocorre que muita gente ligou e mandou mensagem se disponibilizando a me ajudar a levar adiante.

Voltando ao assunto o fato é que, sem nem entrar no mérito da perseguição que o setor cultural tem sofrido pelo poder público e pela sociedade como um todo, a música e a arte em geral vêm, gradativamente, perdendo seu valor como profissão.

Não é de hoje e deixamos acontecer, em vários aspectos. Normal haver quem aceite piores condições de trabalho e de cachê, na tentativa de se inserir no mercado.

Comigo não foi diferente, mas ao longo do tempo nos calamos diante os abusos de todo lado. Associações que não nos representam, má distribuição de receitas (do dono do bar à gravadora), o jabá na rádio, o melodyne e tantas outras fraudes (sim, FRAUDES!) que nos trouxeram a esse cenário atual onde, enquanto uns nos perseguem e nos acusam de vagabundos, outros consomem nosso produto como nunca, totalmente de graça.

Aqui cabe lembrar que, do gramofone ao streaming, houve muita inversão de valores, mas “isso é outra conversa e vocês não estão preparados”.

Um certo não pertencimento sempre permeou a minha trajetória e, num primeiro momento, entendi assim minha inadequação às atuais alternativas de manifestação artística durante o isolamento social, seja na janela, lives, vídeo colab e até editais.

Mas não se trata apenas de timidez, insegurança ou algo do tipo. É também uma resistência visceral em seguir entregando nosso tempo de graça e lutar por migalhas.

O momento é mais do que propício a uma conscientização (obrigado Anitta, mas repense os cachês) e ela cabe a nós. O público médio leigo pensa, por exemplo, que uma música de cinco minutos leva o mesmo tempo para ser gravada.

Imagina que ela chega ao seu confortável sofá, através do seu invejável dispositivo, num passe de mágica. Não vislumbra nem o que envolve a produção de um show de duas horas – que dirá o valor econômico agregado em arrecadação, geração de empregos diretos e indiretos, direitos autorais e conexos, etc…

Vou tentar mensurar um trabalho como side man, sem sequer mencionar os anos de estudo e estrada para me tornar profissional.  Pense num show em outro estado.

Chutando baixo, umas vinte horas pra tirar o repertório, três ou quatro ensaios de quatro horas, deslocamento ao aeroporto (muitas vezes no próprio dia do show), a viagem em si, passagem de som, banho rápido no hotel, o show, algumas poucas horas de sono e volta para casa, geralmente no primeiro voo do dia seguinte.

Faça as contas. Maysa sabia muito bem. Aqui faço um mea culpa: no auge dos meus vinte e poucos anos, nem me preocupava com isso. Ganhava proporcionalmente dez vezes mais do que hoje, considerando a correção monetária com base em tabelas e valores atuais.

Não sei o que virá. Montei meu home studio e também estou tentando me adaptar, produzir conteúdo. Acho que, em algum momento, a falta de contato vai naturalmente valorar nosso árduo trabalho. Espero.

Saudade do samba, da aula presencial e do ao vivo em vez de live, né, minha filha?


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