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Por todas as profissionais da música que não tivemos

Profissionais da música: quantas incríveis musicistas, técnicas de áudio, produtoras ou engenheiras de áudio, por exemplo, deixamos de formar nos últimos anos por alimentarmos e reproduzirmos o sexismo?

Era uma vez uma moça talentosa que vivia no interior de São Paulo, com uma voz limpa, afinada, soprano. Seu talento era natural, não havia qualquer tensão em sua voz e seus agudos eram precisos e claros como um cristal, ecoando pela igreja como uma verdadeira e profunda oração. Seu dom foi notado e foi oferecida uma oportunidade de estudar música na Capital. Mas, como o mundo da música não é pra “mulheres direitas” e ela deveria estar em casa para ter um marido e uma família, ela não foi autorizada pela família (uma improvável mistura de libaneses com índios brasileiros). Durante toda sua vida ela andou pela casa cantando, teve cinco filhos, perdeu dois de forma trágica, enfrentou o alcoolismo do marido, que mais tarde se recuperou. Sua última filha nasceu quando já tinha 40 anos, quando começou a manifestar sintomas do Alzheimer, que só foi diagnosticado mais de 20 anos depois. Segundo diversos estudos, o Mal de Alzheimer pode estar ali, como uma tendência dentro dos genes, mas frustrações e a supressão de sonhos e desejos são fatores decisivos para que a doença se manifeste, influenciando inclusive na velocidade de sua progressão.

Essa história aconteceu há uns 70 anos. E a mulher que abdicou de uma vocação na música é a minha avó materna, que faleceu quando eu era adolescente. A doença evoluiu cedo e nem me lembro da minha avó me reconhecendo, porque quando nasci ela já estava precisando de cuidados. Mas até o último momento em que ela conseguiu emitir sua voz, ela cantou. Em algum lugar do cérebro e do coração dela, a música resistiu ao progresso da demência. Eis o poder da arte!

Fico realmente inconformada de, tantos anos depois de a minha vó ter sido reprimida em sua vocação, ainda haver esse tipo de estigma, que silencia grandes talentos todos os dias. Parte dos desvios da minha rota até o momento presente ocorreram por ter ouvido, inclusive de professores, que o mundo da música era duro demais pra mulher, que eu iria enfrentar muitas dificuldades. Eu insisti, mas ouvia que teria de expor mais meu corpo para “dar certo”, “dormir com os caras certos para conseguir chegar lá”, “ser mais sensual e menos agressiva”, “estar disposta a abrir concessões”. Adolescente (e boba, absorvendo também a mídia todo dia, que reforça esses esteriótipos), acreditei e inclusive reproduzi esse machismo com discursos ridículos ao ver artistas mulheres na TV.

Não é vitimismo

Quantas vezes você, que trabalha em loja de instrumentos, viu um casal entrando em seu estabelecimento comercial e foi falar com o cara primeiro, assumindo que ele que seria o músico que entende das coisas (já aconteceu comigo milhares de vezes). Não é maldade sua, mas você absorve esse tipo de conceito todo dia. Vi pais de alunas de sete anos me proibindo de deixar a criança cantar a música que ela queria “porque é melhor cantar só música de igreja, senão vai desvirtuar minha criança, porque mulher tem que se preservar”, ou alunas adultas super talentosas que não abraçaram a carreira porque a família não deixou e até faziam aula escondidas do marido, já que ele não aceitaria estar com uma musicista, que é tão sexualizada e “disponível pra outros homens” (oi?)!

Quantas vezes você, produtor, não deu oportunidade pra uma moça porque ela não tinha “corpão”? Quantas vezes você, que tem banda, quis uma vocalista mulher ou bailarinas pra “chamar mais atenção”? Quantas vezes você, músico, achou que uma mulher não poderia cantar uma música cantada originalmente por um homem? Quantas vezes você, profissional da música, preferiu contratar um cara mesmo quando tinha uma candidata com mais experiência? Quantas vezes você, que consome música, viu uma artista na TV e falou que era uma “puta” porque tava de roupa curta (eu mesma já fiz isso no passado e tenho vergonha, mas devo admitir e estou desconstruindo)? Quantas vezes você, que consome música, achou que uma cantora dormiu com um executivo de gravadora pra conseguir subir na carreira? Isso acontece? Acontece com homens e mulheres… a indústria tem dessas coisas. Mas não use esse tipo de argumento raso e generalista para desmerecer o trabalho e o talento de alguém.

Poucas profissionais da música

Se formos dar uma olhadinha nas estatísticas, pouquíssimas profissionais de áudio, por exemplo, já receberam Grammys. E não venham com esse argumento passado de que “elas não se interessam por isso” ou “a Beyoncé tá rica lá, você que não se esforça”. A Beyoncé trabalhou muito por anos pra hoje sentir-se forte o suficiente pra levantar a bandeira do empoderamento, da causa negra, e ainda sim está enfrentando uma avalanche de comentários negativos. As oportunidades são infinitamente menores pras mulheres e, quando existem, frequentemente tem remuneração inferior e condições absurdas. Algumas chegam lá? Claro! Mas precisamos de EQUIDADE. Não queremos superioridade, precisamos URGENTEMENTE de oportunidades e de RESPEITO, de não sermos rotuladas ou silenciadas apenas pelo fato de termos nascido com dois cromossomos X.

Convoco todos vocês, leitores, a pensarem sobre o assunto e a entrarem nessa corrente. Quantas incríveis musicistas, técnicas de áudio, produtoras ou engenheiras de áudio, por exemplo, deixamos de formar nos últimos anos por alimentarmos e reproduzirmos o sexismo? Quantas artistas se perderam em drogas e álcool por não conseguirem lidar com a pressão de ser mulher nesse meio maluco e machista? (Spoiler alert: vamos falar mais sobre isso no próximo texto)

É a hora e a vez das mulheres da música, das mulheres do mundo. Vamos em frente, cada vez mais unidas pela vontade de transformar o mundo. Vamos mudar esse cenário. Por todas as mulheres silenciadas do mundo da música.

Imagem: Dreamstime

 

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